Era mais um dia normal na vida desse cidadão de meia idade que chamaremos apenas de "cidadão". Ao acordar - às seis da manhã - fez seu café preto com o sabor amargo misturando-se ao mal hálito característico da murrinha matinal, culminando numa careta sincera, daquelas que só são possíveis quando não há ninguém por perto. Logo após, entrou no banheiro levemente alagado do banho anterior, molhando o pés naquela água gelada. Fez a barba, escovou os dentes e outras coisas mais, que deixaremos de lado em prol de sua privacidade como cidadão. Abotoou sua camisa formal e bem passada, apanhou a pasta de couro e saiu de casa. Claro que antes, verificou se tinha deixado mesmo ração e leite para sua cadela serelepe.
Agora sim, o nosso amigo cidadão estava de fora de sua casca protetora do mundo externo, fazendo um caminho uniforme pela calçada apinhada de outros cidadãos iguais a ele. Boiando naquele mar de marasmo, já não dava nem pra saber se ele era um cidadão, ou se ele era um cão na matilha, ou se ele estava ali, de fato. Sentia o ar preencher o peito, depois sair, depois preencher novamente. Aquilo o confortava, fazendo o sentir satisfeito por mais um dia rotineiro e seguro, sem devaneios. Exceto um, que apareceu como um estalo, absurdo demais para ser verdade.
Cidadão imaginou como seria se ele não fosse um cidadão; e sim um humano. Humano mesmo, à moda antiga, romântico como deveria ser: deitado à beira da lagoa, aproveitando a paisagem e vendo as aves passearem tranquilamente sobre todo o mundo abaixo. Assim que ele queria se sentir: voando alto, na paz que só as nuvens podem proporcionar, acima de todo o mar de mesmice no qual estava imerso. Um calor subiu-lhe o peito, a sensação era boa demais, porém distante como a lua é para nossas mãos nuas. O afago da neblina suave no ar lhe deu um abraço, como uma mãe que conforma seu filho de que não é hora de sair de casa ainda.
Quando deu por si, seu rosto estava levemente molhado pelo sentimento amargo que deixou-se escapar do peito. Colocou os braços roçando forte contra o corpo e andou mais rápido: aquilo não deveria estar acontecendo. Adentrou no mar de pessoas cada vez mais fundo e foi deixando suas individualidades no chão como uma garota larga suas roupas com um ar inocente. E deu um adeus para todo o mundo que sonhou um dia presenciar.
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