As poucas caixas de papelão abertas cheias de coisas velhas dentro davam o tom da situação em que se encontravam os dois rapazinhos recém-chegados. Era um apartamento pequeno, a pintura nas paredes parecia datar de anos atrás, as janelas e as portas mal abriam direito (e quando, com um barulho de se fazer ouvir no prédio todo), a cozinha estava cheia de baratas e osgas caíam do teto a torto e direito. Tudo era desgastado, menos a vontade de viver. Lucas havia vindo para a capital estudar em uma grande faculdade, e Rafael estava lá para tocar uma loja de discos do seu amigo. Mal conheciam a cidade, e cada detalhe, por mais banal que fosse, se tornava apaixonante.
A vista da janela era simplesmente sem graça, e não tinha nada pra olhar, só fumar mesmo. Lucas trouxe um whisky antigo roubado dos pais para comemorar a liberdade, a onda branca de alegria, o arrepio na nuca. Um toque descuidado de Rafael, e a bebida balança no copo com os gelos rebolando. É preciso muito jogo de cintura mesmo pra não parecer outra coisa quando só se pode mostrar uma coisa em certas situações. Ou o tempo todo. Cigarros e álcool, a noite chegando, e o zumbido da vida lá fora parecia ficar mais alto a cada hora. Sem tempo para a euforia de dois meninos, olhando um para o outro, e olhando pra casa.
Daí o sonho acaba e vem aquele flash, aquela lembrança instantânea sobre responsabilidades que todo mundo que se acha alguma coisa não gosta de ter. Ou o contrário, Lucas ainda iria descobrir isso. Rafael ficaria só lendo livros mesmo, beijando Madame Bovary no colchonete furado cheio de traça na cabeça. O primeiro dia ia muito bom, músicas rolando no Stereo e fumaça de cigarro pela casa inteira. Na hora de escovar os dentes, teriam que dividir a mesma escova, mas isso era um prazer até meio que fraternal. Completamente, na verdade. Apesar de não serem parentes, não se importavam de se verem nus, afinal, toda nudez há de ser admirada.
Danem-se os gêneros, vamos ouvir um pouco desses dois rapazes tocando violão e cantando harmoniosamente. É o último cigarro e um pouco de cinza caiu no sofá. Tudo bem, nada que um pouco de amor de amigos não resolva. E a lua ia crescendo, as pessoas lá fora iam morrendo, as baratas passeando e nenhuma osga pra cair na cara de ninguém. Só um lençol e dois travesseiros, uma cama de madeira com os pés em falso e um pouquinho assim de inocência. Um gole de água, os lábios molhados e a respiração mais perto, descompassada com a sua. Embora nunca tivessem tentado, aconteceu. E se beijaram até o mundo acabar.
Variando um pouco o gênero, é? Certeza que mal não faz. Taí, bom conto.
ResponderExcluirHum estamos vendo uma leitura homoerótica, vejo que o tempo, anda aprimorando sua sensibilidade. Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que brilha é diamante... Faça-se luz, brilhe a inteligencia e a sensibilidade.
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