sábado, 20 de novembro de 2010

Kurt Busiek & Alex Ross “MARVELS”

Existe arte normal, aquela que segue o paradigma vigente. Dentre a arte feita nesse conceito, surgem os clássicos, aqueles que reviram todo o paradigma e o leva ao extremo, mas sem transgredir suas barreiras e limitações típicas de um paradigma. Daí existe a arte vanguardista, a que está à frente de seu tempo, a que rompe com o paradigma, e que se torna um clássico instantâneo. Aquela que ignora os limites do senso comum para atingir um patamar de algo novo, excitante. MARVELS é o tipo de obra que se encaixa na avant-garde. O que já a torna um clássico, já que a Marvel é conhecida por seus maçantes textos de altruísmo super-heroicos sem precedentes.

O brilhante enredo desta história em quadrinhos toma como protagonista Phil Sheldon, um jornalista caolho que vai tirando fotos das "maravilhas" (como ele chama os super-heróis, que, aliás, é a tradução do título da obra) através das décadas, culminando num livro homônimo com a coleção de retratos. Portanto, várias passagens famosas dos quadrinhos (como o Capitão América na Segunda Guerra, a invasão de Galactus a Terra, a morte de Gwen Stacy, etc.) são narradas do ponto de vista de pessoas normais, que olham toda a ação lá de baixo, na rua. Sim, aquela galera que ninguém nunca se importou nas histórias em quadrinhos agora mostra as caras, com direito a opinião e personalidade. E remetendo a MAUS, não há pitadas de épico nem heroico, é cru e real. "Cru e real", isso soa engraçado para quem vê numa prateleira um livro com um homem em chamas andando, um cara prateado voando numa prancha de surfe, um anjo segurando uma menina deformada e um duende diabólico sequestrando uma loira. MARVELS podia ser uma piada sim, se não fosse a genialidade de seus autores.

Primeiro porque Kurt Busiek tempera a ficção com um pouco de realidade o tempo todo. Veja a cena do casamento do Senhor Fantástico com a Mulher Invisível, por exemplo, e procure por quatro rapazes de terno vindos diretos de Liverpool pra marcar presença no evento! Sem comentários. Mais interessante ainda é a passagem do tempo na história. MARVELS é dividida em quatro partes, cada parte se passa em uma época diferente. Na primeira podemos ver um Phil Sheldon novo, com dois olhos, conversando com seus amigos sobre a "guerra na Europa", o sonho americano, elementos que marcaram os EUA na década de 30 e 40. Algumas décadas depois essa mesma nação unida mergulha numa onda de racismo pesada, mas MARVELS deixa de lado o racismo contra os negros e mostra realisticamente o racismo contra a raça mutante. Dois recursos interessantes que o artista Alex Ross usou nesse volume, um referente aos mutantes: quando os heróis principais da Marvel aparecem, como o Capitão América, tudo é colorido e seus uniformes brilham como cavaleiros em armaduras reluzentes. Já nas cenas em que os X-Men dão as caras, a arte assume um tema em vermelho, como se fossem negativos de fotos. Bom, para toda foto há seu negativo, não? Será que os X-Men não seriam os negativos do Capitão América, Gigante, Thor, Homem de Ferro? O outro lado da moeda super-heroica? Heróis que prometeram proteger um povo que os odeia? Genial.

O outro recurso que Alex usa nesse volume são as tomadas debaixo dos super-heróis, talvez a mais icônica seja a do Gigante fotografado de baixo. Uma analogia pictórica à inferioridade dos humanos quanto às maravilhas. Sinceramente, eu poderia ficar muito tempo aqui descrevendo todas as artimanhas utilizadas por Kurt Busiek e Alex Ross na confecção dessa obra, citar inúmeras curiosidades escondidas nos quadrinhos (o LP do "Thick As A Brick" haha), a passagem de anos em New York, e mais, muito mais. Podia falar de como Alex Ross pintou tantas ilustrações lindas e realistas, de como a participação de Phil Sheldon em muitos momentos decisivos da história da Marvel não intervém em nada a história original, como exemplo da insignificância humana diante o mundo dos super-heróis. MARVELS é uma obra tão complexa, tão cheia de detalhes, mas em contrapartida tão sutil e bem desenvolvida que não importa se você não é adepto do Homem-Aranha ou ridiculariza o Homem-Formiga. MARVELS vai lhe agradar porque não é apenas um recorte da foto. É a foto inteira, nua e crua, ali, pra você, que pensou que Marvel era apenas um universo em 3x4.

3 comentários:

  1. Rapaz, andas te superando com as tuas resenhas. Objetiva, direta, mas com bastante informação. Enfim, só um especialista no assunto (por acaso o criador do Bicho Grilo), que eu sei que és, podia escrever tão bem sobre quadrinhos. E por falar em fotografia, tá de pé aquela idéia de iniciar o segmento fotográfico por aqui?
    Quanto aos rapazes de Liverpool, ficaram realmente estilosos nesses traços. Deu até vontade de ler pra procurar mais gente famosa.

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  2. Não sou um fã do gênero, mas achei muito interessante esta hq.
    Bom texto, parabéns Pratagy.

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